domingo, junho 8

Cândido da Agra, Professor Catedrático de Psicologia e Criminologia da Universidade do Porto

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Entrevista ao Diário de Notícias de 19.06.2005
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DN - Que políticas de segurança temos em Portugal?
CA - São definidas com base em pressões da opinião pública, mediáticas ou de grupos de interesses, e não através da racionalidade baseada em estudos sobre crime e segurança.
Como as classificaria então?
Não gosto de classificações, podem fixar perigosamente realidades... Entendo que, lamentavelmente, não temos políticas fundadas no conhecimento científico sistemático.
Nunca tentou, junto dos governos, exprimir essa preocupação?
Dois ministros procuraram-me e eu apresentei-lhes - no anterior governo do PS, ao Dr. Fernando Gomes, e ao Dr. Figueiredo Lopes, do governo de Durão Barroso - um projecto de observatório nacional da delinquência. Os dois chegaram a falar em público do projecto, mas saíram dos governos. Neste momento, não sei nada a esse propósito.
Mas seria importante?
Desde o Contrato Cidade (projecto sobre insegurança e criminalidade do Porto) que me pareceu importante que esse observatório passasse a nacional. Estou desencantado com o comportamento da Administração Central e tenho razões para isso. Fui obrigado a desistir da ideia de um observatório nacional, que pudesse aplicar os instrumentos que temos preparados o inquérito de vitimação, o inquérito de delinquência auto-revelada, juntamente com a grelha de sistematização dos dados da polícia. É no cruzamento destes três métodos que se consegue ter uma ideia da dimensão da criminalidade. Na altura do Contrato Cidade aplicámos os instrumentos no Porto, estamos a fazê-lo com o novo Observatório de Riscos Urbanos e Segurança e havia condições para generalizar a experiência a todo o país e sem grandes custos. É isso que proponho.
Mas sem sucesso...
Uma coisa é certa, os problemas da criminalidade são muito sérios e os governos demitem-se dos seus deveres para com os cidadãos nesta matéria. Demitem-se ou funcionam com base em esquemas já ultrapassados. Os problemas actuais da criminalidade e as suas transformações exigem, da parte dos governos, instrumentos rigorosos e permanentes de análise. Os governos não podem mais demitir-se. Não podem mais dizer às pessoas, que têm direito à segurança, que se arranjem com o mercado da segurança privada.
E é isso que temos actualmente?
Neste momento há um aumento das bolhas de segurança, que são as grandes superfícies comerciais, onde as pessoas se refugiam. A rua, o espaço público, tornou-se uma selva. E nós temos direito à liberdade, ao espaço público. É verdade que o Estado não pode fazer tudo, mas os governos mais cultos, em vez de dizer "arranjem-se", dizem "ajudem-me". É o que os nossos governos, sem se demitir, deviam dizer à sociedade civil e ao poder autárquico.
A situação é preocupante?
Pela metáfora vamos lá melhor esta matéria é de tipo sísmico. A sociedade actual vive por cima de magma ardente. Lidamos com coisas fundamentais, que fazem parte da estrutura antropológica: o crime, a lei, o desejo. Não são fenómenos sociais que vão e voltam. Donde precisamos de uma permanente sismografia. A nossa vida decorre em permanente actividade vulcânica e sísmica.
Qualquer dia teremos uma erupção?
Já a temos. Uma coisa é a visível, e o oculto? Existe uma desregulação, que vem de longe. Não apenas na criminalidade violenta, na que é mediática. O investigador francês Philippe Robert analisa o mesmo fenómeno recuando ao século XIX. A desregulação do controlo social começou há muito, com a dissolução dos sistemas de controlo comunitários e a falta de pressão normativa sobre os comportamentos. Maria José Moutinho, investigadora da ECP, iniciou também estudos sobre a insegurança no século XIX. Para percebermos o que nos acontece hoje temos que fazer estudos de carácter histórico que vão tão longe como isso. Temos de nos interrogar sobre os sistemas de vida ditos modernos.
E isso não está estudado em Portugal?
Repare que esta área, desde o final do século XIX aos anos 20, teve eminentes cultores em Portugal. Temos, felizmente, a equipa do professor Figueiredo Dias, que levou por diante estudos de sistematização. O problema é que os juristas não podem fazer tudo, nem estudos empíricos. E a criminologia empírica, em Portugal, ficou-se pelos anos 20. Portugal foi um dos países que, no início do século, mais levou por diante o conhecimento científico sobre o crime. Mas tudo morreu. É essa a história da vontade de saber sobre o crime em Portugal. Tivemos boa semente, excelentes semeadores, mas como é costume, no que diz respeito à cultura científica, temos solos muito pobres e cobertos de mato. Por isso, alguns procuram outros terrenos, para poder crescer e dar fruto.
E a sua partida agora para o Canadá...
Inscreve-se nessa procura de terreno profundo, onde a Escola de Criminologia do Porto se possa desenvolver. O nosso terreno é o infranacional e o supranacional.
O que explica a criminalidade no País?
É preciso desenvolver mais estudos. Mas passa pela falência dos sistemas de controlo, formal e informal. Por outro lado, passa pelo estilos de vida actuais, centrados no valor de consumo, do espectáculo e da visibilidade. A ausência, também, de modelos de identificação. Vivemos em famílias de pais ausentes. Há o desenraizamento cultural, com etnias que chegam sem ponto de referência. É um caldo cultural, feito de ausência de valores, de significações, que faz com que certos fenómenos de grupos juvenis possam emergir. Só conseguiremos uma coesão social com mais justiça. E o que é a justiça? É estar bem "com os outros, para os outros, em instituições justas", como dizia Paul Ricoeur. Há um extremo mal-estar. Todos os estudos da ECP convergem para isto, para um bem-estar da comunidade e de cada um.
E como se consegue isto?
Com verdadeiras políticas de coesão social. É preciso evitar que existam populações que se possam sentir marginalizadas. Vivemos em sociedade fragmentadas. Tem de haver medidas públicas que contrariem a desafiliação social.
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