domingo, dezembro 16

O que falta na justiça é gestão


Um gestor, ao contrário do que muitas vezes se diz ou se ouve, não é alguém que trata recursos escassos com alguma habilidade especial, por forma a criar valor num determinado processo económico, é sim alguém, que num ambiente de incerteza e com falta de informação, decide em tempo útil o que deve ser feito, assumindo o risco dum resultado final incerto que dependerá muito do que ainda não existe hoje. Muito em resumo, é alguém que gere riscos com o objectivo de criar valor para quem o financiou. A ligação da gestão com a justiça é frequente e bidirecional e, para o bem e para o mal, nenhuma funciona sem a outra. A justiça é criticada, na minha opinião, por falta de gestão. Gostava de o demostrar com dois exemplos simples.

É uma acusação recorrente que a justiça em Portugal não funciona, que é pior do que na generalidade dos países desenvolvidos, que é lenta, que prejudica o investimento, que protege alguns infractores, em resumo que não cumpre o seu papel na sociedade. Não tenho nada esta ideia, porque reconheço uma competência e um profissionalismo invulgares a quase todos os que estão ligados com a justiça e depois, porque não conheço nenhum país que globalmente se possa afirmar melhor que o nosso neste aspecto. Haverá alguns que gosto mais, mas isso é outra história.

O gestor aprende assim uma coisa vaga sobre as restrições ou orientações que o direito impõe ao funcionamento das empresas mas o melhor resumo da justiça aprendemos nas aulas de estatística quando se fala em testes de hipóteses, concretamente nos erros tipo I e II, vulgarmente chamados de falsos positivos e falsos negativos. Sem entrar em definições esotéricas e aplicado ao tema, sabemos que se a justiça funcionar mal poderá acusar alguém que esteja inocente (erro tipo I) ou não conseguir acusar alguém que seja culpado (erro tipo II), o que naturalmente são duas situações a evitar. O problema inevitável é que a partir de determinado ponto reduzir um destes erros implica aumentar o outro. Podemos ter então um sistema, como acredito que o nosso pretenda ser, que faz de tudo para decidir corretamente, demorando o tempo que for necessário e atendendo a todos os cuidados, em que se contarão pelos dedos quem é acusado injustamente, mas então porquê tantas criticas? Preferiam um sistema como vemos na América, tão listo nos processos que até à morte já condenou vários inocentes? Bom, há criticas por duas razões, primeiro porque há falta de gestão evidente no sistema e algumas ineficiências de bradar aos céus e segundo, porque esta boa gente da justiça, muito em especial os magistrados, não cuidam da imagem da sua atividade, o que mais uma vez é um problema de gestão.

Poderíamos culpar outra vez os políticos, queiramos ou não e mesmo com a independência formal de poderes, são eles que decidem o sistema jurídico e assinam aquelas leis e outras regras, de origem e propósitos variados, que vão decidindo em plenário, supostamente representativo da vontade popular. Por agora vamos pensando que nem existem, ficaríamos todos mais morenos se esperarmos grandes soluções desta hoste política. Temos os gestores e a justiça, vejamos como os podemos enrolar para o bem comum.

Ir a uma esquadra e a um tribunal evidenciam bem a tal problemática da falta de gestão e da imagem que identifico como as causas primeiras das criticas à justiça. Ontem, depois do jantar em restaurante em zona simpática, alguém chegou ao carro e encontrou um vidro partido e o lugar vazio de algumas prendas de Natal, enfim, nenhum crime muito grave mas que recomendava a devida participação à polícia. O simpático agente não pode ser útil, a impressora tinha-se avariado e era impossível o procedimento previsto naquela situação. Como gestor, para além de me rir, claro, fico com dúvidas. Não seria melhor que estas impressoras avariassem todas de vez até que um informático daquela organização arranjasse forma de substituir estas toneladas de papel nuns ficheiritos arrumados numa simples base de dados? Com alguma imaginação, tal participação até poderia ser feita pelo lesado, quiçá através do mesmo aparelho com que faz chamadas, em formulário disponível para o efeito num sitio qualquer da Internet. É que é fácil a analogia com a ponta visível do iceberg, podemos imaginar o trabalho administrativo e sem qualquer valor que os ditos papéis, se a impressora funcionasse, provocariam numa estrutura e organização complexa até ao seu arquivo final e respectiva reciclagem muitos anos depois. É que não está em causa recuperar o prejuízo do vidro partido ou o valor das ditas prendas que mudaram de usufrutuário,  é fácil de ver que tudo isso são trocos em relação ao custo das tais viagens que um sistema mal pensado iria proporcionar aos tais papéis com as ditas participações.

Vamos agora ao tribunal, e para evitar declarações de interesses, digamos que vou como testemunha. É um processo meio complexo onde se discute uma eventual dívida de valor elevado, decorrente de um embrenhado conjunto de operações financeiras realizadas em bolsa e fora de bolsa. Todo o caso remonta ao final dos anos 80 mas entende-se, é muito dinheiro, muitos peritos, muitos advogados, muitas partes envolvidas, muitas testemunhas. Entende-se nada, não tem é jeito nenhum, pode existir a melhor justificação jurídica para tanta demora nesta decisão mas o certo é que a imagem que o tribunal transmite é a pior possível.

Não acredito que a história da falta de recursos se aplique por aqui, é evidente o argumento dos que, com formação jurídica, dizem que já muito fazem eles e que seria era necessário mais investimento. Voltemos à gestão e ao que é básico, nenhum sistema de justiça, como nenhum sistema de supervisão, de saúde, de educação ou outro, passa a funcionar só porque lhe alocamos uma quantidade de dinheiro suficiente, é que facilmente se verifica que soluções desse género simplesmente não são sustentáveis. Não tenho dúvidas que a justiça podia funcionar melhor e com menores custos, são evidentes muitos dos desperdícios, desde a instrução de um qualquer processo à gestão das instalações dos tribunais. Admiro os que contribuem para este sistema, em especial os funcionários públicos e os magistrados, cujas remunerações pouco ajudam na motivação para o serviço competente que genericamente nos oferecem. O que existe é uma manifesta falta de gestão e até de bom senso.

A conclusão para mim óbvia é que não está em causa passarmos a ter um sistema perfeito de justiça, isso é algo que não existe com custos suportáveis, o importante e que deveríamos exigir é conseguir o máximo com os recursos disponíveis, que se minimizasse o que fica por tratar mas acima de tudo que não se gaste em coisas inúteis, que se arrisque um pouco nas consequências do que não se resolve mas que se resolva direito o que se faz. Em resumo, que tenham uma boa gestão. 

(Consultor em projetos de investimento e seguros de crédito)

Fonte: Público, 13.12.2012