domingo, dezembro 19

Viver é preciso?


Arrasta-se, desde há muitos séculos, uma discussão ética e jurídica sobre a possibilidade de fundamentar direitos em situações de grave necessidade. Dois entendimentos se têm contraposto nesse domínio: o primeiro fundamenta o Direito na natureza da pessoa e nas suas carências elementares; o segundo sobrepõe o valor do cumprimento dos deveres à fragilidade da nossa condição humana.

A primeira opção reconhece a cada pessoa uma espécie de direito irredutível de satisfazer as suas necessidades básicas, mesmo à custa do sacrifício dos direitos alheios. O seu lema é "necessitas non habet legem", expressão latina que significa que a necessidade não tem lei e, por conseguinte, se impõe ao Direito. Os deveres cedem quando a pessoa se debate com as suas necessidades básicas…

A segunda opção identifica certos valores que se sobrepõem à própria vida. Há uma máxima de Plutarco, imortalizada por Fernando Pessoa, que exprime bem essa ideia: "Navigare necesse est, vivere necesse non est" (navegar é preciso, viver não é preciso). Esta frase é extraída da ‘Vida de Pompeu’ e retrata o incitamento aos marinheiros temerosos que se recusavam a viajar em tempos de guerra.

Todavia, ao longo dos séculos o Direito solucionou esta contraposição de um modo muito mais moderado. Inspirado em Hegel, o pensamento jurídico concluiu que a necessidade pode configurar um direito se e enquanto estiver em causa um bem mais valioso do que o sacrificado. É esta a lógica que enforma o direito de necessidade, consagrado como causa de justificação na nossa Ordem Jurídica.

Num Estado baseado na essencial e na igual dignidade da pessoa, a vida de um ser humano vale sensivelmente mais do que a propriedade e permite o exercício do direito de necessidade. Mas a protecção de um bem patrimonial de importância diminuta não justifica o sacrifício de uma vida ou uma ofensa grave contra a integridade física, mesmo no contexto mais permissivo da legítima defesa.

No plano jurídico, não haverá nada que valha mais do que as condições de sobrevivência. Porém, voltando a Plutarco e a Pessoa, podemos aceitar que, assegurada a sobrevivência, deve ser dada a prevalência aos valores patrióticos relacionados com a independência, o desenvolvimento e a cultura, em detrimento dos interesses egoístas dos mercados financeiros e da sociedade de consumo.

O culto do consumo, da abundância e da tecnologia deve ser reconstruído, em função da promoção da igualdade de oportunidades e da justiça social.

A viabilidade do projecto europeu e a coesão das nossas sociedades dependem da capacidade de estendermos a todas as pessoas os frutos do progresso.

Mas é tudo isto que a servidão dos mercados está apostada em impedir a todo o custo!


Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal.

Fonte: Correio da Manhã de 19.12.2010