quinta-feira, dezembro 9

Corrupção da vontade


Seria injusto que quem assume a iniciativa, induz o funcionário ao crime e tira proveito dele não fosse punível.

O bastonário da Ordem dos Advogados defendeu que a chamada corrupção activa deve ser descriminalizada porque quem “corrompe” é, em regra, vítima de um funcionário, necessitando de enveredar por esse caminho para remover entraves à sua actividade. A descriminalização poderia até contribuir para denunciar os funcionários corruptos.

Embora compreenda a intenção, discordo da ideia. Há casos em que a corrupção activa constitui uma espécie de instigação à corrupção passiva. Seria injusto que quem assume a iniciativa, induz o funcionário ao crime e tira proveito dele não fosse (também) punível. Por isso, não se justifica, em geral, a descriminalização de tal conduta.

Aliás, mesmo que não se previsse o crime de corrupção activa, o Código Penal permitiria punir o seu agente como instigador, co-autor ou cúmplice do crime de corrupção passiva. Nos termos do artigo 28.º, nem sequer é necessário que um comparticipante no crime cometido pelo funcionário possua igualmente essa qualidade para ser punível.

Assim, a existência de casos de “quase estado de necessidade” do corruptor não tem um alcance geral que justifique a descriminalização da corrupção activa. Esta abrange situações em que o agente adquire um verdadeiro poder sobre a vontade alheia, explorando as fraquezas de carácter ou as próprias “necessidades” do corrompido.

Quem tem a iniciativa de corromper “causa” o resultado. Assume-se como uma espécie de autor moral, manipulando relações humanas. E, independentemente da iniciativa, a corrupção tem como fonte, em regra, o acordo entre quem corrompe e quem é corrompido. A dinâmica criminosa é bidimensional, embora a lei dissocie os dois factos.

É verdade, contudo, que pode haver casos em que o corrompido condiciona a vontade do “corruptor”. Nesses casos, a Ordem Jurídica permite que se atenue ou, em situações limite, que se exclua a responsabilidade, através das causas de justificação e de desculpa ou mesmo do estatuto processual do “arrependido”.

Descriminalizar a corrupção activa equivaleria a reduzir o fenómeno da corrupção à violação de deveres dos funcionários. Ora, não podemos ignorar que onde se encontram funcionários corruptos há, igualmente, forças sociais que utilizam os mecanismos de corrupção para colher benefícios ilegítimos, com prejuízo para terceiros.

Algumas situações de corrupção activa podem derivar da escassez ou da ausência de oportunidades de exercício de direitos. Todavia, o fenómeno da corrupção deve ser combatido globalmente. No mínimo, seria imprudente desresponsabilizar algum elo da cadeia, beneficiando esferas ilegítimas de poder social.

Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal

Fonte: Correio da Manhã de 16 de Março de 2008