Poucos terão noção da distinção entre crime e contra-ordenação. Poucos conhecerão a sua história, e aquilo em que as contra-ordenações se tornaram. Mas a propósito de caso com projecção mediática desferem-se violentos ataques à justiça portuguesa. Vamos por partes. As contra-ordenações nasceram em 1979 mas o seu regime (ainda hoje aplicável) data de 1982.
O princípio básico era, à época, relativamente simples de enunciar: importava tutelar "uma área em que as condutas, sem constituírem ofensas graves aos bens essenciais da vida em comunidade, são, apesar disso, merecedoras de sanção". Foi esta frase que o legislador escreveu em 1989 quando fez a primeira revisão ao regime geral. Havia um "movimento de descriminalização" e esse movimento era um sinal da "moderna política criminal". Ou seja, porque nem tudo podia ser crime, criou-se um regime para punir coisas mais simples, menos graves. Mas o legislador descontrolou-se (ou deixou que o descontrolassem) e muita coisa que não deveria ser (não poderia ser!) contra-ordenação passou a ser qualificada como tal. A determinada altura desta história passou a admitir-se com grande facilidade que se aplicassem multas de milhões. Multas muitas vezes superiores às multas penais mas aplicadas com um regime simplificado. Como diria o outro, "só para facilitar".
O legislador deixou que fossem qualificadas como contra-ordenações as condutas "menos graves" mas também as "muito graves" e aquelas que agora são agora consideradas "gravíssimas". Só que o regime estava (e está) preparado para coisas mais pequenas, coisas que não causavam tanto impacto social. O legislador foi deixando correr a maré, despreocupado, mas cuidando de multiplicar o âmbito das contra-ordenações.
Há hoje contra-ordenações rodoviárias, ambientais, de concorrência, de supervisão e de regulação entre tantos outros domínios. Matérias de grande complexidade mas todas tratadas "na mesma moeda" como se um excesso de velocidade se tratasse. E com regras adaptadas a essa simplicidade. Incluindo as regras de prescrição. Por esse motivo, aliás, e por se tratar de matéria simples que não interessava muito, o legislador mexeu no regime 5 vezes desde 1982. Mas o Processo Penal foi alterado 20 vezes. E no mesmo período fez um novo Código Penal e introduziu-lhe 29 alterações... Talvez seja uma questão de prioridade. Ou uma inconsciência total e absoluta.
Como é evidente o regime das contra-ordenações tem problemas gravíssimos de aplicação, de adequação e de proporcionalidade. Não apenas um. Muitos. É difícil, aliás, escolher em que ponta começar. Mas agora que a discussão vem a lume, procuram-se culpas e responsabilidades. Talvez o problema não esteja numa árvore ou num processo. Numa decisão ou numa interpretação. O problema vem desse descontrole legislativo e na mania, que começou nos anos 90, em simplificar na justiça, aquilo que é por definição complexo. Pode ser que o debate se inicie com a necessária ponderação. Mais do que rever apenas uma ponta do regime importa ver se tudo isto faz sentido. Se o regime que pune o excesso de velocidade serve, afinal, para punir condutas que no debate público são consideradas tão graves e infames e cujas sanções podem, afinal, não ter limites pecuniários.
Paulo Farinha Alves
(Advogado, especialista em direito penal e sócio da PLMJ)
Fonte: Jornal de Negócios on line, 30 de Março de 2014