segunda-feira, janeiro 22

Parte da lei de estrangeiros portuguesa está em “contracorrente com a UE”

A investigadora Ana Rita Gil considera que parte da lei de estrangeiros portuguesa está em “contracorrente com a União Europeia”, permitindo a regularização a quem está ilegalmente, o que pode alimentar discursos populistas anti-imigrantes na campanha eleitoral.

“Estes artigos, cada um com os seus requisitos, permitem, de facto, que uma pessoa entre ilegalmente, com visto de turista e não munida dos documentos necessários para o efeito, e depois vá ficando, vá trabalhando e, passado um ano com descontos, peça a regularização”, afirmou a docente do Lisbon Public Law (Centro de Investigação em Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa).

Por causa deste quadro legal, “já noto um discurso a começar a surgir na população de reação dos portugueses ao aumento exponencial da imigração”, disse.

“É claro que se diz que os emigrantes contribuem muito para a segurança social”, mas “a habitação, os hospitais e os serviços públicos não são infinitos” e “as capacidades de acolhimento materiais não se esticam”, salientou a investigadora.

“Eu acho que isto vai ser um tema de campanha” eleitoral e “tenho algum receio que isto leve a uma subida da extrema-direita ou dos discursos mais extremistas”, considerou Ana Rita Gil.

O artigo 88 da lei de estrangeiros permite autorizações de residência a cidadãos de outros países que tenham entrado de modo legal em Portugal, através de uma manifestação de interesse, desde que tenham “contrato de trabalho celebrado nos termos da lei e estejam inscritos na segurança social”. E o artigo seguinte trata da “autorização de residência para exercício de atividade profissional independente ou para imigrantes empreendedores”.

Estes dois artigos permitem a qualquer estrangeiro que tenha entrado como turista se possa candidatar a autorizações de residência desde que, no prazo do visto, tenha começado a trabalhar para uma empresa a Portugal. Esta situação é, segundo vários especialistas, o motivo do volume elevado de processos pendentes de regularização, estimados em 300 mil pedidos.

Na lei atual, “nós criámos o visto de procura de trabalho para tentar incentivar as pessoas a virem logo legalmente, só que depois não nos lembramos que os nossos consulados não têm pessoal suficiente e também não estão a conseguir dar resposta” aos pedidos, pelo que “as pessoas acabam por preferir continuar a vir ilegalmente”.

E depois, em Portugal, “as pessoas ficam sujeitas a situações de exploração” pelo que a prioridade do Estado deveria “ser reforçar incentivos a virem logo legalmente”, em vez de entrarem de modo irregular.

Integrado na União Europeia, “Portugal não tem muita liberdade para fazer muita coisa” na lei de estrangeiros, salientou a jurista, considerando que o “artigo 88 e o artigo 89 foram criação peregrina do Estado português”, completamente em “contracorrente com o resto da União Europeia, que “desde 2008 está a dizer que não há regularizações em massa”.

E também “estamos em contracorrente com esta autorização CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], com o processo de incumprimento na União Europeia por causa disto, porque demos esta autorização para acabar com os atrasos [dos processos] e nós não temos propriamente competência para criar autorizações de residência como modelos que não são reconhecidos no espaço Schengen”.

Porque “nós não podemos inventar visto sozinhos”, resumiu.

Estes artigos vão contra “o histórico de decisões do Conselho Europeu” que tem feito recomendações contra este tipo de medias que geram um “efeito de chamada” de imigrantes que buscam a Europa para um estado-membro mais permissivo, acrescentou ainda.

Fonte: Executive Digest com Lusa

quarta-feira, janeiro 3

A onda migratória e a crise da habitação

Portugal abarca hoje duas realidades muito distintas, às quais correspondem diferentes níveis de conforto, de segurança, diferentes prioridades sociais e culturais e, consequentemente, diferentes posturas político-partidárias. Essa é a grande cisão que irá definir as eleições legislativas de 10 de Março.

A crise habitacional é um dos melhores exemplos que divide o país por níveis de conforto e diferentes níveis de inquietação na gestão das necessidades mais elementares da vida. Lamentavelmente, o debate de soluções tem concentrado as atenções do lado da oferta insuficiente, constatando-se o óbvio, e pouco ou nada se fala do que influencia o lado da procura. É ponto assente que existe um problema grave que reclama resolução rápida e eficaz, mas não são discutidas formas de mitigar a extrema afluência populacional em áreas já muito sobrelotadas.

Ora, face à pressão na escassa oferta imobiliária, não é sensato lançar promessas de projectos de construção colossais e inexequíveis no curto e médio prazo, se os mesmos decisores políticos se demitem de abordar aquilo que se passa do lado da procura. Tais propostas revelar-se-ão uma luta inglória, especialmente face à pressão brutal e repentina exercida pela entrada massiva de imigrantes no mercado da habitação. E devemos sublinhar o factor da imigração porque é certamente o mais inédito, o mais permanente e o mais pesado de todos os possíveis factores que contribuem para essa escassez de moradias acessíveis.

Enquanto a esquerda faz campanha através da simples diabolização dos senhorios, ignorando as leis da oferta e da procura, alguma direita defende a construção como remédio para todos males, através da desburocratização dos processos de construção. Mesmo reconhecendo a necessidade de se investir numa política abrangente de habitação acessível e de desburocratizar os processos de licenciamento, é impossível pensar em resolver a crise da habitação sem reconhecer que a chegada incessante de novos residentes vai continuar a impulsionar a subida dos preços da habitação nas principais cidades portuguesas.

Note-se ainda que os portugueses que vivem sozinhos ou os agregados familiares com baixos rendimentos são especialmente penalizados face ao poder aquisitivo de grupos de imigrantes ou de famílias muito alargadas que dividem custos e habitam uma mesma moradia.

Além disso, a oferta habitacional de carácter social é geralmente absorvida em grande medida por estes novos residentes estrangeiros, como se verifica em Londres, onde cerca de metade destas casas são habitadas por famílias chefiadas por pessoas que nem sequer nasceram no Reino Unido. Isto transforma a própria ideia e vocação que associamos à habitação social. Num artigo publicado em Dezembro no “The Spectator”, o académico Matthew Goodwin refere que o Reino Unido, em 2022, registou uma taxa líquida de imigração de 745 000 e que o governo só conseguiu construir 204 000 casas, muito aquém da meta desejada.

Só para responder à procura gerada pela imigração, o esforço de construção teria de triplicar. Isso evidencia não só que o esforço de construção não consegue dar vazão à procura, como também que essas pequenas conquistas no parque habitacional são rapidamente sugadas pelas necessidades de procura dos novos residentes.

Nem todos os portugueses estarão sensíveis a estas tendências, mas cresce uma indignação silenciosa entre aqueles que se sentem empurrados para periferias de difícil acesso, com serviços públicos escassos, sobrelotados e congestionados. Considerando a pequena dimensão das nossas zonas metropolitanas, é impossível confiar em soluções simplistas, especialmente quando o país duplicou o número de imigrantes no espaço de 10 anos, tendo acolhido, só ao longo de 2022, mais de 120 mil novos imigrantes.

Enquanto o partido socialista se apresenta aos portugueses com mensagens em favor de um “país inteiro” e alguma direita preconiza o imperativo moral de acolher cada vez mais e melhor quem nos procura, como se os recursos fossem infinitos, os portugueses vão tendo de lidar com a dura realidade de uma paisagem urbana descaracterizada, de serviços públicos sobrecarregados e de rendas incomportáveis.

Num país socialmente tão fracturado, é urgente dar toda a atenção ao impacto que esta pressão exerce na deslocalização da população autóctone, bem como às dificuldades dos jovens no acesso à habitação própria e à realização dos seus desígnios individuais e familiares. É verdade que é necessário encontrar soluções para a excessiva concentração urbana, especialmente quando se vulgariza a tipologia de residência unipessoal, também um factor que pressiona a procura.

No fim do dia, toda esta questão recorda-nos que a sobrevivência na cidade – incontornável centro agregador de oportunidades económicas, sociais e culturais – é uma luta permanente em que só vencem aqueles que se juntam e cooperam entre si. Os primeiros a cair são aqueles que estão sozinhos, sem laços comunitários e com famílias pequenas ou desintegradas. Como sempre, “the winner takes it all, the loser has to fall”. Enquanto o vencedor açambarca tudo, o vencido tem de cair.

Daniela Silva, Investigadora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Fonte: O Jornal Económico, 03.01.2024