sábado, agosto 24

Tribunais e Democracia


Os estudos que tenho realizado ao longo dos anos sobre o papel e o desempenho dos tribunais em Portugal e outros países mostram que desde a década de 1990 o protagonismo social e político dos tribunais tem vindo a aumentar um pouco por toda a parte. Este protagonismo é particularmente visível no caso dos tribunais constitucionais (TC) e dos supremos tribunais com competência constitucional (STJ).

As causas variam segundo o contexto, mas é possível agrupá-las em três grandes conjuntos: as transições políticas; a crise de legitimidade dos outros órgãos de soberania (o poder legislativo e o poder executivo); e a maior consciência dos direitos e da violação dos direitos por parte dos cidadãos, combinada com o maior acesso ao direito e aos tribunais. 

As transições políticas que determinaram o protagonismo dos tribunais foram obviamente as transições de governos autoritários para governos democráticos e começaram muito antes da década de 1990. Ao longo do século XX, foi-se disseminando a ideia, pioneiramente avançada na Europa por Hans Kelsen na Constituição da Áustria de 1920, de que os governos democráticos devem estar efectivamente vinculados à Constituição por via de controlo jurisdicional. As transições democráticas mais significativas foram as que puseram fim aos seguintes regimes autoritários: o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália (1945-49); o fascismo em Portugal e na Espanha (1974-76); as ditaduras militares na América Latina (década de 1980); o comunismo dos países da Europa Central e de Leste (1989 e anos seguintes); o apartheid na África do Sul (1993-1996). O desempenho dos tribunais no controlo constitucional posterior às transições tem sido desigual. A instabilidade política de algumas delas fez com que, por exemplo, na Rússia, Boris Yeltsin suspendesse por decreto o TC em 1993 e que, na Argentina, Carlos Menem aumentasse de 5 para 9 o número dos juízes do TSJ, a fim de poder garantir uma maioria de juízes cordatos. Em muitos outros casos, o desempenho tem constituído um contributo importante para a consolidação dos regimes democráticos. Na década de 1990, o TC da Hungria era o órgão do Estado mais respeitado pelos cidadãos, por garantir a irreversibilidade da transição para a democracia. Na África do Sul, os líderes políticos (Mandela e de Klerk) que negociaram o fim do apartheid deixaram intencionalmente por resolver algumas questões políticas para que fossem assumidas pelo TC e, na maioria dos casos, o tribunal não se furtou a essa tarefa.

O outro conjunto de factores que tem ditado o maior protagonismo e visibilidade dos tribunais superiores tem a ver com a omissão política ou mesmo crise de legitimidade dos outros órgãos de soberania, o Legislativo e o Executivo. A omissão política pode resultar de impasses entre as forças políticas no Governo e na oposição ou da falta de prioridade atribuída por essas forças a certas matérias importantes para grupos de cidadãos e contempladas na Constituição.

Foi esta omissão que levou o TC da Colômbia, criado pela Constituição de 1991, a protagonizar uma brilhante jurisprudência intercultural (direitos dos povos indígenas) que serve hoje de modelo para toda a América Latina. A crise de legitimidade dos outros órgãos de soberania pode estar associada à corrupção, à crescente distância entre líderes políticos e cidadãos de que resultam decisões políticas irracionais e injustas, em violação patente de preceitos constitucionais. Foi dessa crise que os tribunais italianos emergiram na cena pública, na década de 1990, protagonizando a maior investigação criminal contra a classe política e empresarial da Europa do pósguerra. Esta acção judicial ficou conhecida por Mãos Limpas e envolveu centenas de personalidades conhecidas.

O terceiro factor do maior protagonismo dos tribunais diz respeito à crescente consciência dos direitos cívicos, políticos, económicos e sociais por parte dos cidadãos, associada à ideia de que as violações dos direitos são injustas e devem ser punidas e reparadas. Para que destas duas ideias resulte o maior protagonismo dos tribunais é necessário ainda (1) que os tribunais sejam independentes e o direito processual facilite o acesso, (2) que sejam corrigidas as assimetrias no acesso aos tribunais (nas nossas sociedades, tem menos acesso quem mais dele precisa), (3) que um número significativo de magistrados viva a paixão racional de contribuir para a democracia fazendo valer os direitos, mesmo que com isso tenha de correr alguns riscos. Enumero todas estas condições para mostrar que, por esta via, o protagonismo dos tribunais não é fácil. Mas a verdade é que tal protagonismo tem vindo a ser socialmente exigido com cada vez maior insistência, e as razões disto são complexas.

Primeiro, as agências internacionais e ONG de ajuda ao desenvolvimento nunca promoveram a luta pelos direitos por parte das classes populares com o medo de que essa luta despertasse impulsos socialistas que acabariam por ser aproveitados pelo "comunismo internacional". Foi só depois da queda do Muro de Berlim que o financiamento do sistema judicial e do acesso ao direito se transformou em prioridade internacional.

Além de não haver o perigo do "uso político" do acesso ao direito, era preciso virar os tribunais para as necessidades da economia de mercado. Segundo, a viragem neoliberal fez com que os governos se envolvessem em cada vez mais graves violações do direito e dos direitos. Sempre que os tribunais se mostraram acessíveis, os cidadãos não perderam a oportunidade. O caso mais notável é o do STJ da Índia, que tem ocupado um lugar privilegiado nas expectativas de cidadãos vulnerabilizados, ainda que nem sempre tenha correspondido a essa expectativa. Em tempos recentes, os tribunais brasileiros têm tido um papel significativo na efectividade de algumas políticas sociais, por exemplo, no domínio da saúde. O terceiro factor, e talvez o mais decisivo nos próximos anos, é o inconformismo dos cidadãos perante a eliminação dos direitos sociais e económicos quando os media lhes mostram todos os dias como mesmo em situação de crise os ricos e os super-ricos não cessam de acumular riqueza. A violação dos direitos passa a ser vista como o outro lado do sequestro da democracia e os tribunais passam a ser as instâncias de penúltimo recurso, antes da explosão social.

Boaventura de Sousa Santos
Director do Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
Público | 24-08-2013

Fonte: Revista digital IN VERBIS

quarta-feira, agosto 14

As incompatibilidades eleitorais e a judicialização da política


Os tribunais foram empurrados e envolvidos para um jogo partidário que não lhes pertence e que não querem, mas que, por força das suas competências, têm que decidir.
Em Março passado alertámos publicamente para o problema jurídico da lei das incompatibilidades eleitorais e o desgaste que a indefinição legal iria provocar sobre a atuação dos tribunais.
Invocámos, então, a tentativa de judicialização da política que a questão iria suscitar.
Em pleno processo eleitoral, as primeiras decisões confirmaram o que então se previu. Há decisões a interpretar a lei de determinada forma e há decisões a interpretar a mesma lei de forma contrária.
Argumenta-se e comenta-se a judicialização da política por via das decisões judiciais tomadas.
Se, juridicamente, nada há de estranho nestas decisões, tendo em conta a elaboração dúbia da lei e o princípio da independência dos tribunais, os cidadãos dificilmente compreendem estas situações e as suas perplexidades naturais recaem sobre os juízes que, de forma diferente, interpretam a mesma lei.
O que acontece é que o legislador quis provavelmente que fosse este o resultado de uma lei que todos sabiam que viria provocar esta situação.
Deixando, propositadamente, aos tribunais, o ónus de interpretar uma lei que o legislador não quis oportunamente clarificar, remeteu-se para a justiça uma decisão que tem um reflexo político-partidário imediato e que poderá servir como justificação para derrotas ou vitórias partidárias e concretamente para um "saldo" político que convém a muitos.
Os tribunais foram empurrados e envolvidos para um jogo partidário que não lhes pertence e que não querem mas que, por força das suas competências, têm que decidir.
Os juízes, aplicando a lei, decidem, juridicamente e sempre de forma livre e independente, ainda que de forma diversa. Sejam as leis bem ou mal feitas!
Os tribunais cumprem as leis e a Constituição. Os resultados eleitorais estarão nas mãos dos cidadãos e só nestes.

José Mouraz Lopes, Presidente da ASJP | Público | 14-08-2013

Fonte: Revista digital IN VERBIS


segunda-feira, agosto 12

ESCLARECIMENTO SOBRE PENSÕES DE JUÍZES E DIPLOMATAS


O Gabinete do Secretário de Estado da Administração Pública esclareceu, a propósito de uma notícia publicada em diversos jornais diários, referindo que juízes e diplomatas não seriam abrangidos pelos cortes de 10% nas pensões do Estado, que estes pensionistas «não podem ser sujeitos, em simultâneo, a medidas de redução de remunerações e de pensões aplicáveis, respectivamente, a trabalhadores no activo e a pensionistas», o que «seria uma dupla penalização, dificilmente sustentável do ponto de vista dos princípios de equidade que devem presidir à conformação deste tipo de medidas de reforma».

«As pensões dos referidos grupos de beneficiários estão, por motivos de indexação às remunerações no activo, automaticamente sujeitas a medidas de redução remuneratória, ou outras, que impendem sobre os trabalhadores no activo do sector público. Por força desta circunstância, estes beneficiários tiveram o valor da respectiva pensão diminuído pela aplicação da redução remuneratória (até 10%) imposta pela Lei que aprovou o Orçamento de Estado para o ano de 2011 e mantida nos anos seguintes», refere o esclarecimento, acrescentando que «as pensões destes beneficiários estão sujeitas a todas as medidas que possam vir a ser adoptadas futuramente em matéria de política remuneratória aplicável aos trabalhadores no activo do sector público».

As notícias referem-se a um anteprojeto de proposta de lei «que reforça os mecanismos de convergência das regras de cálculo das pensões aplicáveis aos beneficiários da Caixa Geral de Aposentações para as regras previstas no Regime Geral de Segurança Social, ontem enviada aos Sindicatos, refere explicitamente que não são alteradas as pensões "automaticamente actualizadas por indexação à remuneração de trabalhadores no activo líquida de quotas para aposentação e pensão de sobrevivência"».

Nesta situação estão «alguns grupos de pensionistas que, por força dos seus estatutos específicos, têm o valor da sua pensão automaticamente indexada à remuneração da respetiva categoria profissional no ativo, tendo por fundamento circunstâncias especiais associadas à sua situação de pensionista, nomeadamente, os juízes jubilados e os funcionários diplomáticos com a categoria de embaixador ou de ministro plenipotenciário jubilados».

De facto, os estatutos dos magistrados judiciais e dos funcionários do serviço diplomático referem:

«Estatuto dos Magistrados Judiciais - Lei n.º 21/85, de 30 de Julho

Artigo 67.º - Jubilação

6 - A pensão é calculada em função de todas as remunerações sobre as quais incidiu o desconto respetivo, não podendo a pensão líquida do magistrado judicial jubilado ser superior nem inferior à remuneração do juiz no ativo de categoria idêntica.

7 - As pensões dos magistrados jubilados são automaticamente atualizadas e na mesma proporção em função das remunerações dos magistrados de categoria e escalão correspondentes àqueles em que se verifica a jubilação.

Estatuto profissional dos funcionários do quadro do serviço diplomático - Decreto-Lei n.º 40-A/98, de 27 de Fevereiro

"Artigo 33.º - Aposentação e jubilação

2 - Serão considerados jubilados os funcionários diplomáticos com a categoria de embaixador ou de ministro plenipotenciário que, reunindo os requisitos legalmente exigíveis para a aposentação e contando mais de 30 anos de serviço efectivo na carreira diplomática, passem àquela situação por motivos não disciplinares.

5 - As pensões de aposentação dos funcionários diplomáticos jubilados serão automaticamente actualizadas em percentagem igual à do aumento das remunerações dos funcionários diplomáticos no activo de categoria e escalão correspondentes aos detidos por aqueles no momento da jubilação.»

A recusa da dupla penalização foi expressa «em diversas decisões judiciais a propósito da aplicação, em 2011, da redução remuneratória (de 10%) aos juízes jubilados, com a aplicação, em simultâneo, da Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES). Foram, com base nessas decisões, estes pensionistas retirados do âmbito de aplicação da CES, mantendo-se, naturalmente, no âmbito de incidência das medidas de restrição salarial aplicáveis aos trabalhados no activo».

(2013-08-07 às 12:26)

Fonte: Site do Ministério das Finanças


terça-feira, agosto 6

Números é que contam


Joana Salinas, desembargadora da Relação do Porto, abandonou a magistratura após 30 anos de carreira.

Correio da Manhã – Quais os motivos que a levaram a abandonar a magistratura?

Joana Salinas – Pedi uma licença sem vencimento por duas razões: a primeira foi porque decidi abraçar um projeto na política, apoiando a lista do PS à Câmara de Matosinhos; a segunda foi porque sentia falta do contacto com as pessoas. O trabalho no Tribunal da Relação é importante, mas a verdade é que só lidamos com papéis.

Considera que juízes mais experientes fazem falta no terreno?

Sem dúvida nenhuma. Acho que juízes como eu, com décadas de experiência, deviam poder continuar a julgar processos, pelo menos os mais complexos. É um desperdício para a Justiça os juízes estarem fechados em gabinetes.

Uma das suas lutas sempre foi o combate contra o crime da violência doméstica. Considera que a Justiça ainda falha nesse campo?

Continuam a existir mortes porque nem todos os mecanismos funcionam ainda, infelizmente. O legislador continua também a tratar a violência doméstica como um crime menor. Basta vermos que os julgamentos agora são realizados em tribunal singular, apenas por um juiz, quando até há pouco tempo eram em coletivo, com três juízes. Isto revolta-me.

Considera que os juízes atualmente são mais pressionados, no sentido de tomarem decisões de forma mais célere?

Atualmente os juízes e procuradores estão sobrecarregados de processos e o objetivo de quem nos avalia não é ver se fizemos bem ou mal, o que contam são os números. Existem julgamentos que demoram mais tempo e, quando isso acontece, não se despacham tantos processos, as estatísticas então baixam e o Conselho não gosta nada disso.

Que mudanças, na sua opinião, deveriam ser efetuadas na Justiça?

No meu entender deveriam existir juízes especializados para certo tipo de crimes como violência doméstica e abusos sexuais. Infelizmente não temos formação nessas áreas, a que tenho foi paga do meu bolso.

Fonte: Correio da Manhã 05.08.2013


sábado, agosto 3

Legislar mal


Os portugueses têm tomado conhecimento de diversas decisões dos tribunais sobre a questão da possibilidade electiva dos presidentes "de/da" Câmara que nas próximas autárquicas tenham já concluído três mandatos.

Trata-se de matéria controversa que chegou à barra dos tribunais por o poder legislativo, em tempo útil, não a ter querido resolver. A ambiguidade da norma que estabelece a condicionante electiva dos presidentes camarários poderia, e deveria, ter sido esclarecida pelo legislador.

Este é um exemplo de como se legisla mal, endossando para o poder judicial o esclarecimento de um má redacção, que pode dar azo a várias interpretações, atribuindo-se à decisão judicial uma opção política. O poder político prestou um mau serviço à democracia e às suas instituições. Ao invés de se afirmar que o poder judicial invade o poder político, convirá questionar se não será antes este último que, em certas situações politicamente mais melindrosas e sensíveis, ‘lava as mãos’, remetendo para os tribunais a ingrata tarefa de as decidir, endossando a sua responsabilidade.

Sousa Pinto, Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa

Fonte: Correio da Manhã 03.08.2013