A discussão pública a propósito do Orçamento do Estado para o ano de 2013 e do seu impacto para o estatuto dos juizes trouxe para a ordem do dia o tema da remuneração dos magistrados.
Alguns comentadores acharam completamente inadequada a utilização do argumento da independência dos juizes face a reduções salariais que são comuns a outros servidores públicos, e também aos sacrifícios que são exigidos a todos os portugueses.
Em especial, criticaram a sugestão de que a referida independência poderia ficar em perigo devido às restrições financeiras.
A verdade é que a condição financeira dos tribunais e dos juizes constitui uma questão pública muito relevante. Historicamente, surge como preocupação sempre que se estabelece a devida relação entre os tribunais e os demais poderes do Estado.
Qualquer democracia constitucional avançada tem regras claras que colocam os juizes e os tribunais a salvo de eventuais ameaças dos outros poderes, em especial o executivo. Quando o poder político se sente questionado pela acção dos tribunais (nas suas mais variadas jurisdições), reage por vezes com a arma dos cortes financeiros e orçamentais. É assunto tratado nos manuais da ciência política e constitucional.
A esse respeito existem recomendações regionais e mundiais que têm várias décadas. O Conselho da Europa, ao qual Portugal pertence, na sequência de outra recomendação anterior, considerou mais recentemente (17 de Novembro de 2010, Recomendação R (2010) 12) que a remuneração dos juizes deve ser adequada às suas responsabilidades profissionais e ser suficiente para os proteger de tentativas de influenciar as suas decisões. Devem ser estabelecidas garantias de manutenção de uma remuneração razoável para as situações de licenças por doença e maternidade ou paternidade, bem como para o pagamento de pensões de reforma, que devem ter uma relação razoável com o nível remuneratório correspondente às funções no activo.
Devem ser introduzidas disposições legais específicas de salvaguarda contra reduções de remuneração especificamente dirigidas aos juizes. E há mesmo países – EUA, Brasil e Israel – cujas Constituições estabelecem um princípio de proibição de redução dos vencimentos dos magistrados.
Fará algum sentido obrigar os juizes e os seus representantes a uma defesa do seu estatuto constitucional sempre que se apresentam propostas orçamentais (Orçamentos do Estado anuais e seus rectificativos), parecendo dar razão àqueles que vêem determinadas políticas para os tribunais e os juizes como retaliação a algumas decisões judiciais que atingem interesses ou personalidades de relevância política e partidária? Intencionalmente ou não, esta dimensão da “independência financeira dos juizes” foi totalmente ignorada nesta controvérsia pública.
A verdade é a questão da remuneração dos juizes está ligada ao papel social e político que têm e à estrutura que assegura a integridade da sua função. A redução acentuada da remuneração de todos os juizes, o congelamento dos seus rendimentos durante décadas e a depreciação salarial nos primeiros anos das suas carreiras têm um impacto negativo no estatuto e na qualidade que hoje se exige para os tribunais e a justiça. Os padrões remuneratórios dos juizes devem corresponder a uma função de elevada responsabilidade que se exerce em regime exclusivo, com proibição de levar a cabo qualquer outra actividade remunerada, mesmo ao nível do ensino ou da investigação.
Não está em causa a robustez ética dos juízes portugueses, sobre cuja actuação profissional não há a menor suspeita de corrupção, os juizes nunca venderão a sua independência e imparcialidade.
Mas é essencial evitar que condicionamentos financeiros porventura afectando a vida pessoal e familiar perturbem a serenidade e o equilíbrio de quem se exige que julgue a vida dos seus semelhantes, nas suas diversas dimensões sociais e humanas (e também económicas) com justiça e equidade.
No fundo, trata-se de salvaguardar aquilo que o Estado de direito tem de mais valioso: a existência de tribunais e de juizes que possam exercer o seu poder de forma imparcial, qualificada e livre.
A independência judicial não deve ser entendida como um privilégio dos juizes, mas como um direito pertencente à cidadania e uma garantia universal do correcto funcionamento do Estado constitucional e democrático de direito.
Nesse sentido ela pode e deve ser pensada como um factor de superação e de combate às próprias crises políticas e económicas.
Como, aliás, se tem visto em algumas decisões dos mais altos tribunais, e com certeza se exige que aconteça diariamente em todos os tribunais portugueses.
Nuno Coelho
Fonte: Público de 17.11.2012