Sunday, December 26

Natal e WikiLeaks



A vida social funciona com base na distinção entre pensamentos reservados, que seremos sempre livres de ter sobre os outros, e pensamentos que podemos comunicar. Mas será a ocultação do que se pensa uma necessidade social, ao contrário do que pretende o WikiLeaks? Será essa prática uma expressão da mentira? Existirá, até, um direito à mentira? E o que é, afinal, a mentira?

Benjamin Constant dizia que "o princípio moral de que dizer a verdade é um dever, se for tomado de maneira absoluta, tornaria a sociedade impossível". E acrescentava que só há dever de verdade para com aqueles que têm direito à verdade. Dizer sempre a verdade converter-nos-ia numa espécie de portadores do síndrome de Tourette, incapazes de reprimir todas as palavras inconvenientes.

Immanuel Kant discordava, no entanto, da relativização da verdade e contestava que houvesse um direito de mentir, mesmo quando alguém enganasse o assassino sobre o local em que a vítima se encontrava para salvar a sua vida. Segundo este filósofo, o valor da verdade da declaração seria sempre superior a qualquer outro interesse, prevalecendo sobre a realização de um bom efeito.

Para Kant, o Direito sobrepor-se-ia à Política e à gestão de quaisquer interesses, ainda que legítimos. A Política deveria ser regulada pelo Direito e, por isso, a verdade obrigaria, em absoluto, sempre e todos. Assim, se a verdade condenasse uma pessoa a ser assassinada, a causa do crime não seria a verdade, mas um puro acidente – o conhecimento dado ao assassino sobre a localização da vítima.

O espírito de Constant é mais próximo da realidade humana. Mentir para salvar alguém de um crime não lesa senão uma ideia e dizer a verdade pode conduzir ao próprio crime. Quem mentir para impedir um crime não mente verdadeiramente porque está a defender outrem. Mentir é sobretudo censurável quando, intencionalmente, se comunica uma ideia falsa e lesiva de valores humanos.

Concordo com Kant quando afirma que a Política deve ser regulada pelo Direito. Porém, o Direito não pode vincular os destinatários a algo que não seja aceitável, por ser inadequado à sua condição e insusceptível de ser escolhido num processo livre, justo e democrático. A revelação de factos verdadeiros sujeitos a sigilo não pode ser um direito quando lese valores importantes em troca de muito pouco.

Arthur Schnitzler, na ‘História de Um Sonho’, mostra que nem a realidade de uma noite nem a realidade de toda a vida revelam a verdade do ser humano. O que somos nem sempre corresponde ao que dizemos ou fazemos, carecendo de interpretação. Na história do Natal, a realidade crua da pobreza oculta a dignidade da pessoa. Seria a lupa do WikiLeaks capaz de descrever a verdade desse sonho?

Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal

Fonte: Correio da Manhã de 26.12.2010