Friday, June 11

Justiça formalista





O tribunal de Gaia absolveu um homem do crime de homicídio depois de ele ter confessado a um juiz de instrução o crime e o modo como se desfez do cadáver. Este é o melhor retrato de uma justiça formalista que se alheia da verdade material.
O caso não é único. Esta situação tem-se repetido desde a entrada em vigor do actual Código de Processo Penal. Aliás, logo em 1991 o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a absolvição de uma mulher que tinha confessado a um juiz a prática de um crime de homicídio. Depois de ter matado o marido a tiro diante dos filhos, a mulher confessou o crime à polícia, ao Ministério Público e ao juiz de instrução. Contudo, em julgamento a mulher calou-se, como se calaram também os filhos que foram apontados como testemunhas da acusação. A mulher, como os filhos, apenas exerceu os seus direitos processuais. O resultado foi inevitável: o tribunal absolveu a mulher por falta de provas. Toda a gente sabia naquela sala de audiência e naquela cidade quem tinha matado a vítima e o Estado não foi capaz de fazer justiça. Alguém disse mais tarde o que todos pensaram: a vida vale pouco em Portugal!
Isto acontece porque só em dois casos a lei portuguesa admite expressamente a leitura de depoimento do arguido prestado antes da audiência. O primeiro caso é o do pedido do arguido. Isto é, podem ser lidas as declarações anteriormente prestadas pelo arguido diante da polícia, do Ministério Público ou do juiz quando o arguido o solicitar.
O segundo caso é o das contradições entre o depoimento do arguido prestado em julgamento e o seu depoimento prestado diante de um juiz antes do julgamento. Se o arguido se recusar a prestar declarações na audiência, não há discrepância, nem contradição com as declarações feitas anteriormente. Portanto, pode ocorrer a situação em que o arguido confesse o crime em público, à polícia, ao Ministério Público e ao juiz de instrução, mas venha a ser absolvido por ter recusado prestar declarações no julgamento.
O regime actual tem uma motivação histórica clara. Devido à experiência dolorosa vivida no período da ditadura, o legislador não confiou na liberdade das confissões realizadas fora do julgamento, diante da polícia e até do Ministério Público. Esta motivação não se justifica hoje numa democracia madura, em que os órgãos de perseguição criminal estão submetidos à lei e são controlados pelos tribunais. Acresce que nenhum outro país na Europa tem uma solução tão radical como a portuguesa na postergação do valor jurídico da confissão judicial anterior ao julgamento. Mais ainda: a lei não regula sequer o regime das declarações prévias feitas por um arguido nos casos cada vez mais frequentes de um membro arrependido de uma organização criminosa que denunciou a organização no inquérito e foi morto ou desapareceu na véspera do julgamento. E na quase totalidade destes casos as declarações prévias do arguido arrependido são o principal ou o único meio de prova da acusação.
Tudo razões mais do que suficientes para uma reforma que se impõe há muito destas regras cruciais da justiça portuguesa. Mas que o Governo ignorou por completo na proposta de revisão do Código que apresentou. Seria de toda a conveniência que a Assembleia da República acudisse a este problema grave da lei portuguesa, gizando soluções mais conformes com o padrão europeu actual.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE (Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa)

Fonte: Diário de Notícias de 11.06.2010